Publicado no DOE - RO em 5 nov 2019
Consulta acerca da alienação fiduciária à luz do art. 3º, VII da Lei Complementar nº 87/96 e da Lei nº 688/96.
A cobrança de diferencial de alíquotas incidente sobre aquisição interestadual de mercadoria destinada a uso ou consumo ou a ativo imobilizado do estabelecimento adquirente encontra respaldo no art. 155, §2º, VII da CF/1988, que assim dispõe:
VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;
Pela previsão constitucional, quando um estabelecimento vende mercadoria para consumidor final situado em outra unidade da federação, ocorrem dois fatos geradores do ICMS. O primeiro ocorre por ocasião da saída da mercadoria do estabelecimento remetente, sendo o imposto devido ao Estado de origem. O segundo, por ocasião da entrada da mercadoria no estabelecimento destinatário, sendo o imposto devido ao Estado de destino.
Entende-se por consumidor final, qualquer pessoa, física ou jurídica, contribuinte ou não do imposto, que adquira mercadorias para uso próprio e não para comercialização ou industrialização.
Em Rondônia, o fato gerador do diferencial de alíquotas está previsto no art. 2º, parágrafo único, IV da Lei nº 688/1996, nos seguintes termos:
Art. 2º O imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação - ICMS, de competência dos Estados, incide sobre: (...)
Parágrafo único. O imposto incide também: (...)
IV - sobre a entrada, no estabelecimento de contribuinte, de mercadoria oriunda de outra unidade da Federação, destinada ao uso ou consumo ou ao ativo imobilizado;
A Lei nº 6.404/1976 traz a definição de ativo imobilizado em seu art. 179, IV:
Art. 179. As contas serão classificadas do seguinte modo: (...)
IV – no ativo imobilizado: os direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios, riscos e controle desses bens;
A título de ilustração, suponha-se que um contribuinte estabelecido em Rondônia, atuante no ramo de transporte de cargas, adquira, de fornecedor estabelecido em São Paulo, um caminhão para integrar seu ativo imobilizado. Nesta operação, o remetente deverá recolher para São Paulo, por ocasião da saída da mercadoria de seu estabelecimento, um ICMS equivalente à aplicação da alíquota interestadual de 7% (ou de 4%, em se tratando de mercadoria importada ou com conteúdo de importação superior a 40%) sobre o valor da operação.
O destinatário, contribuinte estabelecido em Rondônia, por seu turno, deverá recolher para este Estado, por ocasião da entrada da mercadoria em seu estabelecimento, um ICMS correspondente à aplicação da diferença entre a alíquota interna utilizada neste Estado e a alíquota interestadual aplicável no Estado de origem sobre o valor da operação.
Considerando hipoteticamente que a operação foi realizada por R$ 100.000,00, caberia a cada Estado os seguintes montantes:
Fato gerador | Sujeito Ativo | Sujeito Passivo | ICMS devido |
Saída da mercadoria do estabelecimento remetente | Estado de origem | Remetente | R$ 100.000,00 * 7% = R$ 7.000,00 |
Entrada da mercadoria no estabelecimento destinatário | Estado de destino (Rondônia) | Destinatário | R$ 100.000,00 * (17,5% - 7%) = R$ 10.500,00 |
O diferencial de alíquotas tem por objetivo equiparar a carga tributária incidente nas operações internas com a incidente nas operações interestaduais e, por conseguinte, promover uma melhor distribuição de receitas entre os entes federados. Além disso, visa atender ao princípio da neutralidade tributária, segundo o qual a tributação deve interferir o mínimo possível nas decisões dos agentes econômicos, em respeito à livre concorrência. Isso porque, não fosse o diferencial de alíquotas, as operações interestaduais estariam sujeitas a uma carga tributária mais favorável, o que poderia desestimular as aquisições internas.
Para melhor visualização do exposto, suponha-se que o caminhão citado no exemplo acima tenha sido adquirido de estabelecimento situado neste Estado. Nesta hipótese, a operação estaria sujeita a uma carga tributária de R$ 17.500,00, correspondente à aplicação da alíquota interna de 17,5% sobre o valor da operação (R$ 100.000,00).
Por outro lado, suponha-se que o mesmo caminhão pudesse ser adquirido de estabelecimento situado em São Paulo, sem a cobrança do diferencial de alíquotas. Nesta hipótese, a operação seria gravada com uma carga tributária de R$ 7.000,00, equivalente à aplicação da alíquota interestadual de 7% (ou de 4%, se a mercadoria for importada) sobre o valor da operação.
Percebe-se, pois, que sem o diferencial de alíquotas a aquisição interestadual mostra-se muito mais atrativa, o que poderia prejudicar os fornecedores internos, na medida em que os adquirentes poderiam ser induzidos a negociar com fornecedores de outras unidades da federação, em busca de uma menor carga tributária. Ao mesmo tempo, prejudicaria o Estado de localização dos adquirentes, uma vez que este não teria participação na receita tributária oriunda da operação, visto que a arrecadação relativa à carga tributária incidente seria destinada, em sua integralidade, ao Estado de origem. Assim, resta claro que a cobrança do diferencial de alíquotas busca atender aos princípios da neutralidade tributária e da livre concorrência, além de tornar mais equânime a distribuição de receitas entre as unidades da federação envolvidas na operação.
É importante frisar que o diferencial de alíquotas incide sobre toda aquisição interestadual de mercadoria destinada a uso ou consumo ou a ativo imobilizado do adquirente, exceto nos casos de imunidade, isenção ou não incidência.
Um caso específico de não incidência tem suscitado confusões entre os contribuintes. Trata-se da hipótese prevista no art. 3º, VII da Lei Complementar Nacional nº 87/1996, lei de normas gerais do ICMS, nos seguintes termos:
Art. 3º O imposto não incide sobre: (...)
VII - operações decorrentes de alienação fiduciária em garantia, inclusive a operação efetuada pelo credor em decorrência do inadimplemento do devedor; (grifo nosso)
Há situações em que o adquirente recorre a um terceiro na busca de recursos para efetuar o pagamento da mercadoria adquirida, firmando com este um contrato de alienação fiduciária. Alguns contribuintes têm entendido, com fundamento no dispositivo supra, que a aquisição interestadual de mercadoria objeto de alienação fiduciária está fora do campo de incidência do imposto.
Para entender o alcance da norma, é preciso destacar quais são as operações decorrentes de alienação fiduciária a que alude o dispositivo. A resposta está nas alíneas do art. 3º, VII da Lei nº 688/1996, norma que instituiu o ICMS neste Estado. O legislador estadual não se limitou a reproduzir a redação do dispositivo contido na lei complementar, mas entendeu por bem discriminar, a título de elucidação, quais são as operações abrangidas pela não incidência. Antes de enumerá-las, cumpre tecer algumas considerações acerca da alienação fiduciária, instituto disciplinado nos arts. 1.361 a 1.368-B do Código Civil de 2002.
A alienação fiduciária se origina de um contrato de compra e venda, mas com ele não se confunde. Trata-se de negócios jurídicos distintos. A compra e venda envolve o vendedor, que se obriga a transferir o domínio de certa coisa ao comprador, que, em contrapartida, fica obrigado a pagar-lhe certa quantia em dinheiro (CC/02, art. 481). É contrato regulado pelo Código Civil de 2002 nos seus arts. 481 a 504, que se resolve com a tradição da coisa e o pagamento do preço ajustado.
Paralelamente à compra e venda, o comprador que não possuir recursos suficientes para pagamento do preço ajustado, pode firmar acordo com um terceiro, por meio do qual este se obriga a efetuar o pagamento da coisa ao fornecedor. O pagamento do preço acordado e a tradição do bem em favor do comprador encerram o contrato de compra e venda, que se tem por consumado. No entanto, a quitação do preço por parte do terceiro dá origem a uma nova relação jurídica entre o devedor fiduciante, figura que coincide com o comprador no contrato de compra e venda, e o credor fiduciário, terceiro responsável pelo pagamento da coisa adquirida. Nessa relação jurídica, distinta da operação de compra e venda que lhe deu causa, repisa-se, o devedor fiduciante transfere a coisa adquirida para o credor fiduciário a título de garantia do cumprimento da obrigação principal, qual seja, o pagamento do empréstimo obtido para aquisição do bem, reservando para si as faculdades de uso e fruição do mesmo. Sobre essa transferência de domínio do devedor fiduciante em favor do credor fiduciário, não incide ICMS, conforme esclarece a alínea “a” do inciso VII do art. 3º da Lei nº 688/1996. Confira-se:
Art. 3º O imposto não incide sobre: (...)
VII - operações decorrentes de alienação fiduciária em garantia, compreendendo a:
a) transmissão do domínio feita pelo devedor fiduciante em favor do credor fiduciário;
Se o devedor fiduciante cumprir com suas obrigações, retoma a propriedade plena do bem, reunindo em suas mãos todos os poderes a ela inerentes, a saber, uso, gozo e disposição. Sobre essa operação de transferência de titularidade do bem do credor fiduciário em favor do devedor fiduciante, também não há incidência de ICMS, conforme preleção do art. 3º, VII, alínea “c” da Lei nº 688/1996:
Art. 3º O imposto não incide sobre: (...)
VII - operações decorrentes de alienação fiduciária em garantia, compreendendo a:
(...)
c) transmissão do domínio do credor em virtude da extinção, pelo pagamento da garantia.
Por outro lado, caso o devedor não efetue o pagamento da dívida no vencimento, tornando-se inadimplente, a propriedade do bem se consolida nas mãos do credor fiduciário, que deve, obrigatoriamente, vendê-lo para satisfazer seu crédito e as despesas com a cobrança, conforme determinação do art. 1.364 e observada a regra do art. 1.365, ambos do CC/02.
Art. 1.364. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor.
Art. 1.365. É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento.
Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta.
Essa operação de consolidação da propriedade do bem nas mãos do credor fiduciário em decorrência da inadimplência do devedor fiduciante também está fora do campo de incidência do imposto, conforme lição do art. 3º, VII, alínea “b” da Lei nº 688/1996:
Art. 3º O imposto não incide sobre: (...)
VII - operações decorrentes de alienação fiduciária em garantia, compreendendo a:
(...)
b) transferência da posse, em favor do credor fiduciário, em virtude de inadimplência do devedor fiduciante;
Assim, como bem esclarece FARIAS et al. (2018)1, o fornecedor da mercadoria não toma parte efetiva na alienação fiduciária, “mas se encontra na fase embrionária desta, uma vez que aliena para o devedor fiduciante e recebe o valor do credor fiduciário”. Com efeito, a relação entre o fornecedor e o devedor fiduciante é regida pelas regras da compra e venda, exclusivamente, e se encerra com o cumprimento das obrigações por eles assumidas. Seguem os autores elucidando que “a propriedade fiduciária será estabelecida entre o devedor fiduciante (que transferirá o bem e deverá pagar o empréstimo original) e o credor fiduciário (que receberá a propriedade resolúvel do bem e tem direito ao pagamento de seu crédito)”. Fica clara, assim, a distinção entre as operações de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia, que apesar de conexas, não se confundem.
Para os efeitos de incidência tributária, os negócios jurídicos também devem ser distinguidos. Isso porque, enquanto a operação de compra e venda se sujeita ao ICMS, o art.3º, VII da LC nº 87/1996, afasta as operações decorrentes da alienação fiduciária do âmbito de incidência do imposto, conforme discriminado nas alíneas do art. 3º, VII da Lei nº 688/1996, já analisadas. Reitere-se que a operação de aquisição da mercadoria está sujeita à incidência do imposto, cujo fato gerador se considera ocorrido, em se tratando de diferencial de alíquotas, no momento da entrada da mercadoria no estabelecimento destinatário. Nessa relação jurídica figuram como sujeito ativo o Estado de destino e como sujeito passivo o adquirente da mercadoria indicado como destinatário na nota fiscal de aquisição, contribuinte do imposto estabelecido neste Estado.
As operações decorrentes da alienação fiduciária, por seu turno, estão, inexoravelmente, fora do campo de incidência do imposto. Conforme já destacado, a redação do art. 3º, VII da LC nº 87/1996 é clara ao afirmar que o ICMS não incide sobre as operações decorrentes de alienação fiduciária e como já mencionado, é importante que se faça a adequada distinção entre essas e as operações decorrentes da aquisição bem. A aquisição da mercadoria não é operação decorrente da alienação fiduciária, até porque antecede a ela.
Nas palavras de SHREIBER et al.2, “a propriedade fiduciária é constituída mediante a aquisição de um produto, momento em que o adquirente, para poder obter o empréstimo para comprá-lo, aliena ao mutuante o que acabou de adquirir”. Ainda nos dizeres dos referidos autores:
“(...) podemos pensar que a despeito de a propriedade ser do credor, as responsabilidades civis e tributárias competem ao devedor, exatamente porque o negócio de transferência tem o escopo de garantia e não de efetivo interesse econômico em fazer do fiduciário proprietário e do fiduciante um simples possuidor direto”. (grifo nosso)
Em complemento, pode-se destacar que apesar da transferência de domínio em favor do credor, o bem continua integrando o ativo imobilizado do devedor fiduciante. Isso porque, o CPC 00, no Item 4.12 deixa claro que o direito de propriedade não é essencial para que um bem seja reconhecido como ativo, bastando que a entidade controle os benefícios econômicos do bem e assuma os riscos a ele inerentes. Com efeito, na alienação fiduciária, o devedor fiduciante mantém o controle do bem e assume os riscos a ele inerentes, conforme art. 1.363 do Código Civil/2002 que assim dispõe:
Art. 1.363. Antes de vencida a dívida, o devedor, a suas expensas e risco, pode usar a coisa segundo sua destinação, sendo obrigado, como depositário:
I - a empregar na guarda da coisa a diligência exigida por sua natureza;
II - a entregá-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento.
Diante de todo o exposto, resta claro que na alienação fiduciária, primeiro o bem é adquirido pelo devedor fiduciante por meio de contrato de compra e venda do qual o credor fiduciário não é parte efetiva. Num segundo momento, já como proprietário do bem, o devedor o aliena, com escopo de garantia, ao credor fiduciário, sem prejuízo dos efeitos tributários derivados da operação de compra e venda, que permanecem intactos.
Assim, conclui-se que a hipótese de não incidência prevista no art. 3º, VII da LC nº 87/1996 alcança tão somente as operações decorrentes da alienação fiduciária, entendidas essas como a transmissão do domínio feita pelo devedor fiduciante em favor do credor fiduciário, transferência da posse, em favor do credor fiduciário, em virtude de inadimplência do devedor fiduciante e a transmissão do domínio do credor em virtude da extinção, pelo pagamento da garantia, conforme enumerado nas alíneas do art. 3º, VII da Lei nº 688/1996.
Reitere-se que tais operações não se confundem com a operação de aquisição da mercadoria que deu causa à cobrança do diferencial de alíquotas, tampouco tem o condão de alterar os efeitos tributários dela decorrentes. Uma vez ocorrido o fato gerador do diferencial de alíquotas, o imposto torna-se devido, independentemente de convenção particular firmada entre o adquirente, contribuinte do imposto, e terceiro com o fim de obter recursos para o pagamento da mercadoria. Assim, resta claro que a operação de compra não decorre de alienação fiduciária, mas a ela antecede, não estando, portanto, abrangida pela não incidência do art. 3º, VII da LC nº 87/1996.
É o Parecer.
À consideração superior.
Porto Velho/RO, 05 de novembro de 2019.
Camila de Oliveira Vilaça
Auditora Fiscal de Tributos Estaduais
Matrícula 300149594
Nádja Pereira Sapia
Auditora Fiscal de Tributos Estaduais
Matrícula 300151157